quarta-feira, janeiro 24, 2007

Violência(s)

Isabel de Almeida
Advogada e militante do PS


Num momento politico em que tanto se debatem os Direitos das mulheres, a propósito do próximo Referendo acerca da Interrupção Voluntária da Gravidez, urge não olvidar outros temas igualmente relevantes, que concernem, de igual modo, à vivência feminina na sociedade moderna, designadamente a violência doméstica ou todas e quaisquer formas de violência física e psicológica sobre mulheres.
No âmbito profissional, vejo-me confrontada frequentemente com exemplos de violência exercida, em regra e na maioria, contra mulheres muitas vezes dependentes de terceiros (quantas vezes dos próprios agressores que são seus pais, cônjuges, companheiros, filhos ou outros familiares).
Devido a inovações legislativas introduzidas no artigo 152º do Código Penal, decorrentes da Lei n.º 7/00 de 27 de Maio, o crime de maus tratos - de natureza pública, ou seja, permitindo a prossecução de processo crime contra o infractor a cargo do Ministério Público e não sendo admissível desistência por parte da vítima – passou a prever uma moldura penal de 1 a 5 anos de prisão para toda e qualquer pessoa que inflija maus tratos físicos ou psíquicos ou ainda tratamentos cruéis, entre outras situações, a cônjuge ou pessoa com quem conviver em situação análoga à dos cônjuges.
Esta alteração conduziu, de per si, a uma melhor salvaguarda dos direitos e interesses de vítimas de crime de violência doméstica, que tantas vezes, em momento anterior a este novo regime jurídico-penal, eram forçadas pelos agressores a desistir de processos-crime já iniciados, ou receavam mesmo dar inicio a qualquer acção penal.
Todavia, a violência continua a verificar-se, em diversas situações do quotidiano, e nomeadamente continuam a aumentar as vítimas de crimes sexuais, nomeadamente do crime de violação, previsto no artigo 164º do Código Penal.
Ora, se já algo relevante foi feito para melhorar ou minimizar, dentro do possível, os meios de defesa das vitimas de crimes violentos, existe uma medida que, pela sua simplicidade, e parecendo pouco relevante, pode mesmo ser a condição que permite que uma vítima de violência possa fazer valer os seus direitos contra o agressor perante os nossos tribunais.
Refiro-me, em concreto, ao facto de o actual regime de acesso ao Direito e aos Tribunais não contemplar qualquer excepção que isente de custas a vítima de violência.
Tal questão é deveras pertinente, se atentarmos no facto de, muitas vezes, a vítima estar em situação de total dependência económica do agressor, nem tendo hipótese de aceder a documentação necessária para requerer o benefício de apoio judiciário que a isentará, previsivelmente, das custas judiciais e do pagamento de honorários de advogado a nomear.
Convém ainda referir que, muitas vezes, devido à dependência financeira e à convivência de absoluto terror entre a vítima e o seu agressor, esta nem sequer tem acesso aos rendimentos ou pecúlios do agregado familiar, todavia, tais rendimentos são levados em linha de conta para aferir da hipótese de concessão de benefício de apoio judiciário.
Obviamente, estas reflexões que aqui deixo à consideração dos leitores, constituem, assim se espera, um grito de alerta ao nosso legislador, pois que muitas vezes, só a pratica permite ver para além da frieza da lei!
Pensemos pois que a cada um de nós cabe dar alguns passos no caminho em direcção a uma sociedade mais justa e equilibrada.

1 comentário:

jpa disse...

Peço antecipadamente desculpas pelas minhas perguntas de leigo mas não pude deixar de sentir alguma perplexidade, pelo que pareci entender do texto. Se bem entendi, o crime de maus tratos passa a ter um caracter público, não podendo cessar por desistência da queixa da vítima. Em vez de um julgamento para resolver um diferendo entre partes privadas com uma alegadamente agressora e a outra vítima, e que pode ser terminado a qualquer momento por decisão das mesmas, teríamos agora o público/estado a considerar-se uma das partes lesadas... o acto de maus tratos que antes poderia ser consentido (é esse o significado que atribuo a quem desiste de uma queixa verdadeira), ganharia o estatuto de acto absolutamente proibido aos olhos da sociedade, independentemente do consentimento ou não, de quem o sofre... é isso?

Assumindo que seja isso, parece-me que neste contexto, o crime de maus tratos poderia ser investigado por simples denuncia de qualquer um, desde que haja evidências... o que conduz à minha perplexidade: Desde quando um cidadão roubado sente escrúpulos em reportar o roubo, por suspeitar que não vai poder suportar as despesas judiciais posteriores?

É certo que existe quem não reporte (e não serão poucos) mas por outras razões: por pensarem que é uma perda de tempo que não vai dar em nada, por ser um caso que pensam isolado e quererem esquecer, etc... mas se souberem que é um crime e sentirem que se pode repetir, certamente que o farão, excepto talvez se o agressor tiver estabelecido com sucesso algum ascendente sobre a vítima (caso das extorsões e chantagens por exemplo, e sim,... o caso dos maus tratos em discussão). Não é certamente por temerem os custos judiciais. Mesmo que estes sejam um factor real, duvido que alguém o leve em conta ao reportar um crime público (e mal de nós se assim fosse, é por essa razão que pagamos impostos). Portanto, suponho que os mesmos não podem ser assim tão elevados que assustem alguém.

Mas os argumentos aduzidos sobre a dependência económica da vítima parecem-me pertinentes. Se esta existe, quer me parecer que ela é mais eficaz a evitar a denuncia que os custos judiciais per si, uma vez que é o sustento do lesado que está em causa. Não sei o que a lei prevê nestes casos, mas se quisermos realmente prevenir este tipo de crime, parece-me que temos que quebrar esse ascendente do agressor sobre a vítima. O que me ocorre, é que um tribunal está numa posição particularmente vantajoso para exercer esse papel, uma vez que tem o direito (e dever) de recolher os factos para apoio ao julgamento, Se chegar à conclusão que a vítima é indigente economicamente sem o apoio do agressor, então não só deve accionar automaticamente o processo de isenção de custas judiciais (como propõe no seu texto) como indo mais longe, deve assegurar instantaneamente a entrada da vítima nos programas de apoio social pertinentes... estou a pensar no Rendimento Mínimo, por exemplo. Se existirem condições para os ingressos, o processo de investigação vai-os revelar naturalmente, o que torna desnecessário novas apurações pelos serviços que gerem estes programas (ou quiçá, poderia haver protocolos entre a justiça e estes mesmos para apuramentos desses factos se os técnicos desses serviços fossem mais competentes para tal).

Quanto ao financiamento do esforço extra (ordenado judicialmente) destes programas, ele poderia ser parcialmente assegurado por obrigações ao estado a impor ao agressor confirmado em julgamento. O financiamento directo da vítima pelo agressor (tipo pensão de alimentos em divórcio) não me parece ser a via correcta imediatamente a seguir a este, uma vez que reproduziria a situação de dependência económica que se queria evitar... se queremos assegurar a independência da vítima para que esta se sinta com força para actuar, é preferível que as "promessas" que o estado faça não dependa do "bom" comportamento de terceiros, neste caso, o alegado agressor. Quanto à possibilidade de fraudes nestes processos, elas são certamente reais, mas nada que não possa ser bem estudado. Sobre isto, reparo que a fraude só poderia vingar se os seus executores tivessem a audácia de enganar directamente o tribunal... um acto que não me parece, os mesmos julguem levemente se o descobrirem.

Uma vez que a vítima fique consciente que o estado a apoiará automaticamente caso o tribunal comprove a sua razão, a pressão económica deixa de ser um factor vital e ela fica mais livre para tomar boas decisões, Posso prever inclusivamente que em alguns casos, o crime de maus tratos seja prevenido mais eficazmente, uma vez que o agressor já não tem o argumento financeiro para usar como método de pressão. Noutros, a situação piorará porque há agressores contumazes que não conseguirão desistir, e na falta de argumentos, arranjarão outros piores. Mas mesmo estes aparecem evolutivamente por pequenos passos (na transgressão), e se alguns destes forem mais difíceis ou não puderem existir, as probabilidades de nunca chegarem a algo pior serão mais elevadas.

Mas como eu disse, não sei o que a lei faz neste momento. Se existirem situações em que os tribunais já podem ordenar o reingresso automático nesses programas, deduzo que o único problema aqui então, é a ligação formal da vítima aos rendimentos do agregado para efeitos de julgamento. Neste caso, a solução passaria simplesmente por rever a forma como encaramos essa ligação.


Por último, aceitem as minhas sinceras desculpas pelo tempo despendido, se acharam as propostas anteriores demasiado ingénuas para serem discutidas. São, como disse à partida, os comentários de um leigo. Para terminar (e descomprimir), espero que me perdoem mas arde-me a curiosidade de saber a resposta a esta hipotética situação: suponhamos que se abre um processo contra um cônjuge num casal por maus tratos sobre o outro, mas que em julgamento se vem a descobrir que se um maltrata fisicamente o outro, este responde com maus tratos psíquicos sobre o primeiro, e vice-versa, não sendo claro quem é o culpado original. No contexto da nova lei, podem ambos serem presos? :-)